Mesmo com consciência, “continuamos caminhando pro precipício”: Bernardo Carvalho e o paradoxo humano

Por que o ser humano percebe a destruição que causa ao seu redor e continua o rumo sem mudança de atitude? Ou, usando uma expressão do jornalista e escritor brasileiro Bernardo Carvalho (“Mongólia”,”O Filho da Mãe”, “Reprodução”) porque “continuamos caminhando pro precipício, sabendo que estamos indo pra lá“? A frase está num trecho e no título de uma entrevista que Bernardo deu a Arthur Tertuliano, do site Posfácio, publicada hoje, e que traz esse paradoxo intrigante à reflexão:

“(…) O que mais me interessa é o paradoxo de uma espécie que, quanto mais luta pela sobrevivência, quanto mais procria, mais se aproxima do esgotamento das condições de possibilidade da sua sobrevivência. E, sobretudo, o que me interessa nesse paradoxo é o seu lado trágico, de uma consciência trágica que não me parece existir em nenhuma outra espécie. Nós volta e meia reproduzimos uma representação do juízo final. Hoje, com os discursos ambientalistas, por exemplo, passou a ser um lugar-comum achar que estamos nos aproximando do fim, mas o interessante é que nem essa consciência, respaldada pela ciência e transformada em senso comum, é capaz de nos fazer interromper o processo suicida. Continuamos caminhando pro precipício, sabendo que estamos indo pra lá. O homem pode associar sobrevivência e suicídio, mas nem por isso deixa de seguir adiante, rumo à sua própria extinção, como se fosse esse o seu projeto e o seu destino. Tem uma beleza trágica nesse paradoxo”.
~ Bernardo Carvalho, em “Continuamos caminhando pro precipício, sabendo que estamos indo pra lá” (Posfácio)

Em muitas circunstâncias a consciência verdadeira é capaz de transformação, mas neste caso não parece haver uma consciência verdadeira. Há uma informação captada, a de que há destruição, abuso, padecimento, etc, mas isso está mais para uma informação que passa a ser conhecida, à distância, do que uma real tomada de consciência.

Lembra aquelas fotos trágicas nos versos das embalagens de cigarros. Porque o ser humano continua a comprá-los, a abri-los e a fumá-los, mesmo sabendo, a cada vez que os compra ou os saca do bolso, que há aquela realidade ali? Não há saúde nem nutrição nem alegria nem nada de particularmente forte para superar a consciência de tão intoxicante hábito. Semana passada ainda vi um poster gigante do lado de um caixa que vendia cigarros que dizia conter “mais de 4.700 substâncias tóxicas no cigarro“. E esse produto ainda vende tanto em tantos lugares.

Mas podemos elocubrar algumas causas pra isso. A primeira, é que somos auto-centrados demais. Se nosso dia vai bem, não criamos consciência sobre o problema do outro, ou dos outros, ou do ambiente como um todo. Não temos interesse. Temos uma agenda. No caso do cigarro, nossa identidade com o drama pessoal, nosso sofrimento, cria a busca pelo alívio (que, por ser alívio, talvez seja uma forma de prazer), e isso é vivido na pele. A segunda é justamente o contrário disso, a distância: estamos distantes demais e mantemos a distância pra preservar a integridade da primeira causa. Se nosso dia não é interrompido por uma falta de água ou de energia, por um forte cheiro de lixo ou algo assim, continuamos rumo ao nosso dia. E ao precipício. O problema está lá, longe, no emissário submarino, no fornecimento de água, no político corrupto que rouba e não evita o apagão, nos galpões da China, no imposto federal. Há muitas outras, mas arrisco uma terceira: não temos meios coletivos para ajudar a criar essa consciência, tudo o que temos são uma cultura ainda centrada no prazer e na imagem pessoal, e temos também meios de comunicação historicamente preenchidos pelo entretenimento, pelas falsas notícias e pela necessidade de manter anunciantes que tem justamente interesse no consumo individual inconsciente. Aqueles que são co-fundadores do precipício.

Mas, além da maturidade e da decisão pessoal, um contato genuíno com o problema também pode ajudar a criar consciência verdadeira. Muita gente já tem novos hábitos em relação à água, ao lixo, à energia e ao transporte. Muitas vezes essa consciência nasce de um problema sério no seu dia, na sua casa, no seu bairro, ou na presença do problema de outra pessoa que é verdadeiramente experimentado e não-ignorado. Enquanto não criarmos consciência verdadeira, continuaremos “seguindo adiante” com nossas meias-consciências para o precipício. Paradoxalmente.

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