A admiração de Vargas Llosa pelo padre anarquista, sonhador e trabalhador “anti-teologia” Ugo de Cenzi, de Chacas (Peru)

O padre italiano Ugo de Cenzi “acredita que o dinheiro e a inteligência são o diabo, e que os discursos arrevesados e teorias abstratas da teologia e da filosofia não aproximam de Deus, mas afastam dele”. Como não gostar disso?

O escritor peruano Mario Vargas Llosa, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (2010), gosta. Adora. Tanto que escreveu o artigo abaixo, divulgado em jornais como o Estadão, num elogio grandioso e uma homenagem ao padre salesiano de 89 anos que é um líder religioso – e prático – de Chacas, pequena cidade no Peru, intitulada “Chacas É O Céu” (abaixo). Mês passado, no aniversário de seus 77 anos, Vargas Llosa voltou à cidadezinha para comemorar com sua família e viver “a experiência de Chacas”. E, também, reencontrar o padre Ugo.

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CHACAS É O CÉU” [TRECHO] Por Mario Vargas Llosa (Tradução de Celso Paciornik)

Chacas está mais perto do céu do que qualquer outro lugar do planeta. Para chegar lá é preciso escalar as montanhas nevadas da Cordilheira dos Andes, cruzar abismos vertiginosos, alturas que beiram os cinco mil metros e depois descer, por ladeiras escarpadas que os condores sobrevoam, ao desfiladeiro de Conchucos no departamento de Ancash. Ali, entre quebradas, riachos, lagunas, terrenos semeados, pastos e um contorno onde se vislumbram todas as tonalidades de verde está o povoado de 1.500 habitantes e capital de uma província que abriga mais de 20 mil.

A extraordinária beleza desse lugar não é apenas física, é também social e espiritual graças ao padre Ugo de Censi, um sacerdote italiano que chegou a Chacas como pároco em 1976. Alto, eloquente, simpático, fornido e ágil apesar de seus quase 90 anos, ele possui uma energia contagiante e uma vontade capaz de mover montanhas. Nos 37 anos que está aqui, ele converteu esta região, uma das mais pobres do Peru, em um mundo de paz e trabalho, de solidariedade humana e criatividade artística.

As idéias do padre Ugo são muito pessoais e, por diversas vezes, devem ter deixado os superiores de sua ordem – os salesianos – e os hierarcas da Igreja muito nervosos. E os economistas e sociólogos, nem se fala.

Ele acredita que o dinheiro e a inteligência são o diabo, que os discursos arrevesados e teorias abstratas da teologia e da filosofia não aproximam de Deus, mas afastam dele, e que a razão não serve de grande coisa tampouco para chegar ao Ser Supremo. Este, não se deve tentar explicá-lo, deve-se desejá-lo, ter sede dele, e, se alguém o conseguir, abandonar-se ao assombro, essa exaltação do coração que produz o amor. Ele detesta a cobiça e o lucro, o pélago burocrático, o viver de renda, os seguros, as aposentadorias, e acredita que se há uma crítica a fazer à Igreja Católica, esta é ter-se afastado dos pobres e marginalizados entre os quais nasceu. Ele vê a propriedade privada com desconfiança. A palavra que aparece com mais frequência em sua boca, impregnada de ternura e acentos poéticos, é caridade.

Ele acredita, e dedicou sua vida a prová-lo, que a pobreza deve ser combatida a partir dela, identificando-se com ela e vivendo-a junto com os pobres, e que a maneira de atrair os jovens para a religião e para Deus, dos quais o mundo atual tende a separá-los, é propondo-lhes viver a espiritualidade como uma aventura, entregando seu tempo, seus braços, seus conhecimentos, sua vida para lutar contra o sofrimento humano e as grandes injustiças de que são vítimas tantos milhões de seres humanos.

Os utópicos e grandes sonhadores sociais costumam ser vaidosos e autorreferentes, mas o padre Ugo é a pessoa mais simples da Terra e quando, com aquele senso de humor fulgurante que jamais o abandona, ele diz “Gostaria de ser um menino, mas acredito que sou sobretudo um revoltoso e um stupido” (palavra italiana que, em espanhol, melhor se traduz não como estúpido, mas como um tonto, ou um bobinho), diz exatamente o que pensa.

O curioso é que esse religioso, um tanto anarquista e sonhador, é, ao mesmo tempo, um homem de ação, um realizador magnífico que, sem pedir um centavo ao Estado e pondo em prática suas ideias peregrinas, realizou em Chacas e arredores uma verdadeira revolução econômica e social. Construiu duas centrais elétricas e canais e depósitos que dão luz e água ao povoado e a muitos distritos e anexos, vários colégios, uma clínica de 60 leitos equipada com os mais modernos equipamentos clínicos e cirúrgicos, uma escola de enfermagem, oficinas de escultura, carpintaria e desenho de móveis, granjas agrícolas onde se aplicam os métodos mais modernos de cultivo e se respeitam todas as prescrições ecológicas, escola de guias de altitude, de pedreiros, de restauração de obras de arte colonial, uma fábrica de vidro e oficinas para a elaboração de vitrais, fiações, queijarias, refúgios de montanha, albergues para meninos deficientes, albergues para idosos, cooperativas de agricultores e de artesãos, igrejas, canais de irrigação e, este ano, em agosto, será inaugurada em Chacas uma universidade.

Essa enumeração incompleta e fria não diz grande coisa: é preciso ver de perto e tocar todas essas obras, e as outras que estão em marcha, para maravilhar-se e comover-se. Como foi possível? Graças à essa caridade de que o padre Ugo tanto fala é que há quase quatro décadas traz para estas alturas dezenas e dezenas de voluntários italianos – médicos, engenheiros, técnicos, professores, artesãos, operários, artistas, estudantes – para trabalhar de graça, vivendo com os pobres e trabalhando ombro a ombro com eles para acabar com a miséria e ir fazendo retroceder a pobreza. Mas, sobretudo, devolvendo aos camponeses a dignidade e a humanidade que a exploração, o abandono e as condições iníquas de vida lhes haviam arrebatado. Os voluntários e suas famílias pagam as próprias passagens, recebem alojamento e comida, mas nenhum salário, tampouco seguro médico nem aposentadoria, de modo que fazer parte desse projeto significa, para eles, entregar seu futuro e o dos seus à mais absoluta incerteza.

E, no entanto, ali estão eles, vacinando crianças e puxando enxada para represar um rio, levantando casas para comuneiros misérrimos em San Luis, desenhando móveis, vitrais, estátuas e mosaicos que irão para San Diego e para a Calábria, dando de comer ou fazendo terapia com doentes terminais do asilo de Santa Teresita de Pomallucay, levantando uma nova central elétrica, cozinhando as 700 refeições diárias que são distribuídas gratuitamente e formando técnicos, artesãos, professores, agricultores que assegurem o futuro dos jovens da região. Um desses voluntários se chamava Giulio Rocca e trabalhava em Jangos, onde foi assassinado por um comando do Sendero Luminoso que antes lhe explicou que o que ele fazia ali era um obstáculo intolerável à revolução maoista. Anos depois, outro membro do projeto, o padre Daniele Badiali, foi assassinado também porque se negou a entregar o resgate que lhe pedia um punhado de ladrões.

Há hoje cerca de 50 voluntários em Chacas e cerca de 350 em toda a região. Eles vivem modestamente, em comunidade os solteiros e em habitações os casais com filhos, misturados com os pobres e, repito, sem ganhar salário algum. As obras que constroem, mal a terminam eles a cedem ao Estado ou aos próprios usufrutuários; segundo a filosofia do padre Ugo, o projeto Mato Grosso não tem bens próprios; os que cria, só os administra temporariamente e em benefício dos necessitados, aos quais cede quando eles se tornam operacionais. O financiamento das obras provém, além da exportação de móveis, de doações de instituições, empresas ou pessoas de muitos lugares do mundo, mas principalmente da Itália.

Os voluntários vêm por seis meses, um, dois, três, dez anos, e muitos ficam ou regressam; eles trazem seus filhos ou os têm aqui, nesta moderníssima clínica onde os usuários só pagam o que podem e são atendidos gratuitamente quando não podem. É divertido ver aquela nuvem de meninos e meninas de olhos claros e cabelos ruivos na missa de domingo, misturados com os meninos e meninas do lugar, cantando em quéchua, italiano, espanhol e até latim. Perguntei a muitos desses voluntários se às vezes não lhes angustiava pensar no futuro, o deles e o de seus filhos, um futuro para o qual não haviam tomado a menor precaução, nem economizado um centavo. Porque só em Chacas os pobres têm assegurado um prato de comida, uma cama onde dormir e um médico que os atenda em caso de doença. No restante do mundo, onde reinam aqueles valores que o padre Ugo chama de diabólicos, os pobres morrem de fome e as pessoas olham para o outro lado. Eles encolhiam os ombros, faziam brincadeiras, sempre haveria um amigo em alguma parte para lhes dar uma mão, Nossa Senhora proverá. A confiança e a alegria são como o ar puro que se respira em Chacas.

Estou convencido de que, apesar da notável grandeza moral do padre Ugo e de seus discípulos e do trabalho fantástico que eles vêm realizando nos quatro países onde tem missões – Peru, Bolívia, Equador e Brasil – não é com esse método que se poderá acabar com a pobreza no mundo. E não acredito porque meu ceticismo me diz que não há, no vasto planeta, uma dose suficiente de idealismo, desprendimento e caridade para produzir transformações como as daqui. Mas como é estimulante viver, ainda que por um punhado de dias apenas, a experiência de Chacas e descobrir que ainda há neste mundo egoísta homens e mulheres entregues a ajudar os demais, a fazer isso a que chamamos o bem, e que encontram nessa entrega e nesse sacrifício a justificação de sua existência.

Oxalá houvessem tantos stupidi no mundo como em Chacas, querido e admirado padre Ugo!”

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Compartilhado por Norma de Andrade Cardoso.

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