“Nada funciona no samsara”: um ponto vital a entender, por Dzongsar Kyenthse

Pense nisso: “nada funciona no samsara“. Pense nisso sabendo que estamos no samsara.

Estamos a todo vapor em meio aos nossos “planos” para que o samsara funcione para nós.

Mas, como diz Reginald Ray, um grande professor de Budismo Tibetano e autor de “Touching Enlightenment”, entre outros livros: “o que quer que você esteja pensando que vai funcionar, desista, porque não vai se realizar“. Essa frase está no ensinamento de Ray em relação aos “4 lembretes”, uma conhecida sabedoria budista para se manter na prática espiritual (há um post inteiro sobre isso aqui: “Se você não tem vontade de meditar, você não deveria meditar”: uma questão de integridade, por Reggie Ray). Mas ela se refere ao que estamos planejando fazer na vida (samsárica), seja o que for.

PS: Para entender melhor o que é samsara, leia este post: O samsara não é um lugar: 3 autores budistas falam sobre a “perambulação” iludida do ser humano.

“Nada funciona no samsara” é trecho da seguinte frase do lama budista butanês Dzongsar Kyentshe Rinpoche, um dos grandes mestres vivos da nossa época:

“É vital entender que não importa o quão positiva essa vida mundana, ou mesmo uma pequena parte dela, possa parecer, no fim ela vai falhar porque absolutamente nada genuinamente funciona no samsara.”
Dzongsar Kyenthse Rinpoche

Nada genuinamente funciona. Entendo isso também como nenhuma solução permanente ou verdadeira pertence ao samsara. Por sua mutação constante, por sua natureza de impermanência, alguma coisa que realmente “resolva” alguma coisa de maneira definitiva aqui é impossível. Seria como buscar a permanência dentro do reino da impermanência. Não dá. Não pode dar. Não é para dar.

Perambular por esse reino buscando o que não pode dar certo é talvez a maior ilusão de todas. E um grande sofrimento.

Mas, então, o que fazemos?

Primeiramente, perceber isso em toda sua magnitude. Deveria fazer um enorme “estrago” no nosso modo de viver. Segundamente, talvez “buscar” o Nirvana. Uma das traduções de Nirvana é o reino da liberdade, “o estado da liberdade de todas as visões e de todo sofrimento“, como diz o monge zen Thich Nhat Hanh. O caminho para a “perfeita felicidade“. A “felicidade mais elevada”, como disse o próprio Buda. Parece um bom plano para resolver o problema do samsara, né?

Nirvana também pode ser traduzido como “o reino da realidade”. Assim, estaria em contraponto ao reino da ilusão (samsara), onde a realidade é distorcida pela intervenção do ego.

O “caminho” para encontrar esse Nirvana então seria se aproximar da realidade, da visão da realidade. Perceber o samsara como ele é, cheio de apegos, raiva e ignorância se movendo sobre o chão movediço da impermanência.

Abaixo seguem algumas palavras do célebre Chokgyur Lingpa (1829-1870), um grande guia do caminho para o Nirvana.

“Para ver se você está consciente ou não da impermanência, cheque se seus planos são de longo ou curto prazo. Para ver se você percebe o samsara como defeituoso ou não, cheque quão forte são seus apegos. Para ver se você vai conseguir a liberação no futuro ou não, cheque se sua conduta é boa ou má. Para ver se você tem promovido a bondade e a compaixão ou não, cheque se você cuida daqueles que necessitam. Para ver se você domou o demônio da raiva ou não, cheque quanta aversão você sente por seus inimigos. Para ver se você tem dissipado o demônio da ignorância ou não, cheque o quanto você se prende à esperança e medo. Para ver se você tem purificado os três venenos ou não, cheque quão livre da avidez você está. Você saberá se sua prática de Dharma está se tornando o caminho ou não ao examinar cuidadosamente sua própria mente”.
Chokgyur Lingpa

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Foto: Página oficial de Dzongsar Kyentshe Rinpoche no Facebook.

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3 Comments

  1. says: Daniel Formaio dos Reis

    Há algum tempo atrás interpretei mal este ensinamento, interpretando-o literalmente: “Mas então quaisquer empreendimentos estão fadados ao fracasso?”
    Creio que não seja bem assim! Mesmo porque a vontade treinada, inclusive pela meditação, favorece a aquisição de coisas no Samsara, sendo assim, se me permite, em determinado ponto de vista algo funciona no Samsara.
    Todavia quaisquer que sejam as coisas conseguidas, são efêmeras e hão de se esvair, tal qual como a impressão que irão causar no ego.

    1. Oi Daniel,

      É difícil aceitarmos que nada funciona no samsara, né? A primeira reação é de rejeição total. Agora há uma aceitação parcial no seu comentário, mas ele ainda fala em “aquisição de coisas”, como se fosse uma solução real para algo. Entendo o teu ponto como uma vontade que exista um “funcionamento bem-sucedido parcial” no samsara, pelo menos. Ou seja, a água mata a sede, ainda que seja só naquele momento. Talvez. Mas o que entendo do ensinamento é que não há água no samsara que mate a sede da alma. E o maior problema é que a gente pensa que há, e que mata a sede.

      Mas talvez seja importante dar um passo atrás para sintonizarmos o que é samsara. Ou o que conseguimos entender dele. Samsara não é um lugar, tipo esse planeta, mas um estado de confusão, de ilusão, de ignorância a respeito da realidade, um “perambular por aí” (como disse Dudjom Rinpoche) — no mesmo “lugar” onde há o Nirvana. Então, nesse estado de confusão, ilusão, etc, qualquer coisa que você vá querer que funcione não vai funcionar. Inclusive, ou principalmente, o desejo que algo funcione em caráter permanente, pois a característica da existência é impermanência.

      Na minha particular leitura, essa frase e esse ensinamento tem um poder e uma vastidão astronômicas. Há que se deixar contemplar na companhia dela, há que se aprofundar e compreender quanto há aí, porque ela vai crescendo e se mostrando, se conectado a outras compreensões, e, quem sabe, nos tirando da confusão um pouquinho.

      Deixo outro post interessante sobre isso, publicado aqui há alguns anos:
      http://dharmalog.com/2014/01/06/samsara-budismo-perambulacao-ilusao-humana/

      Obrigado pela tua mensagem.

      Nando

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