A fé de um sábado azul e a situação da espiritualidade na América em reportagem da Newsweek

A Newsweek saiu na semana passada com uma matéria de capa “Spirituality in America“, embasada numa pesquisa da Beliefnet, tentando enxergar o mapa da espiritualidade no país mais capitalista do mundo. Acho interessante explorar o panorama americano no assunto mais importante da vida (embora a mídia seja um aliado e um inimigo em assuntos que cabem maniqueismos fáceis). Então, apesar de um texto bem anos 60 – cartesiano, propositadamente não-aprofundado (o que tb tem seu significado) – há um visível lastro de luz captado pela matéria. E ele está exatamente na pergunta “qual a principal razão porque você é religioso”, em que 58% (na web, 39% na revista) responderam “to forge a personal relationship with God“. A segunda mais clicada, com 13% (na web, 30% na revista), foi “to be a better person and live a moral life”. E a terceira, “to find happiness and peace of mind”, teve 7% na web (e 17% na revista). O público da revista é sempre mais tradicional, conservador e resistente, enquanto na Web há mais libertarianismo, informação e cultura geral. Traduzindo, a resposta 1 foi escolhida por uma maioria ampla, e deve incluir as pessoas com espiritualidade real e aquelas que querem de fato se sentirem mais próximas de Deus (seja lá quem elas pensem que Ele seja). Nesta categoria há pessoas genuinamente espirituais e outras que ainda dependem de fé ou de religião, mas um passinho à frente dos antepassados. A resposta 2 é típica de uma religião tradicional, conservadora e de pessoas não-praticantes, um número bem grande nos nossos dias. Por fim, a resposta 3 tem cara de budista, mas também inclui gente mais pragmática e que pode ou não se considerar espiritual (business people, por exemplo). A principal resposta não consta da lista, que poderia ser algo como “to find the truth, about life, about the universe, God and ourselves“. Pode ser tida como a principal pq não é uma pergunta instrumental (i.e. de utilidade pessoal) nem é cartesiana, é sincera, profunda e é a mais abrangente de todas, porque revela tudo o que há para ser revelado – todas as outras respostas seriam partes desta. Mas a própria pergunta da pesquisa é fraca, ela indaga “where do you stand on Faith?“. Note que a ainda é um conceito balizador, embora totalmente caduco. A fé como a conhecemos é um dogma fundamentalista, um conceito escravagista cercado de expectativas, futuros, moralismos. É um indicador de falsa religião e de espiritualidade zero (isso é assunto pra mais de livro, mas tudo bem). Tony Campolo, um evangelista que participou da matéria, diz:

“You can know all about God, but the question is, do you know God? You can have solid theology and be orthodox to the core, but have you experienced God in your own life?” In the broadest sense, Campolo says, the Christian believer and the New Age acolyte are on the same mission: “We are looking for transcendence in the midst of the mundane.”

Note como ele fala “Christian believer” e não “Christian knower”. J. Krishnamurti fala muito sobre isso, e pra ele o caminho da verdade é inevitavelmente livre e não depende de nenhum dogma ou religião. Por isso, eu acho (rs), a pesquisa registra que o grupo religioso que mais cresce é “nenhum“. Isso significaria o seguinte: nenhuma das respostas anteriores conhecidas por essas pessoas é válida para elas. E nenhuma resposta nova, ou que elas passem a conhecer agora, será válida se ela não for contextualizada por elas mesmas (as pessoas). Elas mesmas têm que montar o quebra-cabeças e chegar à Verdade, se Ela existir (note que do ponto de vista delas isso ainda é incerto – é como tentar comprovar uma teoria que pode ter seus próprios pressupostos errados). Lama Surya Das, um grande budista na America, diz na matéria:

“People are looking for transformative experience, not just a new creed or dogma.”

Mais que isso até. Pq uma experiência transformadora vai acabar acontecendo, mas buscar “apenas” uma experiência pessoal pode desvirtuar o caminho, como por exemplo colocá-las nas mãos de falsas teorias ou de soluções paliativas, duas coisas que se mostram insalubres a longo prazo. Muita gente busca e acha coisas falsas por desespero, para “ter ao que se agarrar”. Não pode haver equívoco mais patológico. Enquanto isso a Verdade simplesmente é, e aguarda “lá fora”, independente das minúsculas necessidades humanas. Era pro homem aprender isso naturalmente, como aprende a ler, a escrever, a trabalhar, mas o mundo parece sugar essa capacidade dele, e ele aceitou. O que parece estar acontecendo é que alguns não estão mais gostando de aceitar.

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7 Comments

  1. Bem, como agnóstico quase levado ao ateísmo pelo livro “Deus e o Estado”, de Mikhail Bakunin tenho para mim uma percepção de um mundo em que o grande governante é uma entidade que não consigo entender, alcançar ou perceber totalmente chamada Natureza. Esta natureza, que para alguns poderia ser chamada de Deus, é de meu ponto de vista parcialmente incognoscível e intrinsicamente misteriosa. Resta a contemplação e a noção de que, sendo a percepção aproximada da realidade que nós, débeis Homo sapiens temos do mundo o que conseguiremos alcançar, precisamos relamente nos dedicar em entender mais da nossa própria natureza para então dedicar mais tempo e energia ao estudo da Natureza exterior. Pois, não é justamente as deficiências de nossa natureza interior que causam os grandes males da moderidade que todos percebemos ao nosso redor?

  2. says: nando

    Perceber uma unidade ampla (um ser superior?) e uma ordem básica da existência demonstra inteligência e perspectiva, Rafa. Mas há MUITO MAIS ao nosso alcance. Simplesmente pq não é de ordem nenhuma, de existência nenhuma, corroborar a ignorância ou o subuso de grandes poderes (mesmo que tudo fosse inerte e imparcial, seria um gigantesco e irracional desperdício). E qdo chegarmos ao que não for do nosso alcance, trocaremos de nave em busca do mais claro e mais profundo.

    Mas o principal no teu comentário, Rafa, é que a viagem interior é justamente a exterior. ;)

  3. Acho que conseguistes te expressar melhor do que eu. Partilho desta percepção de que “a viagem interior é justamente a exterior” como bem colocastes. Creio em uma grande teia de interconexões da qual fazemos parte, você, eu e todas as coisas. Todos somos um, é o que sinto, é baseado nisso que vivo. O que ainda não consigo é trazer na totalidade este sentimento para a prática diária, nos relacionamentos interpessoais.

    É um exercício diário. Que vale a pena.

  4. says: Pelagia

    nesse sentido, acho que caberia uma leitura mais generosa da resposta dois.
    Ela tanto pode significar um comportado arraigado à uma noção negativa de moral como amarra, como pode significar mais, compreende? Da mesma forma que alguém pode achar que busca paz de espírito e da mente, quando há tantos que vivem em paz a custo de uma indiferença odiosa…Também pode existir pessoas que levem à sério a construção de uam relação com Deus que as ajudem a se burilar para serem pessoas melhores, consigo e com o outro, e pensar no entrelaçamento coletivo que há sob cada conduta individual, como falastes sobre como encarar o aquecimento global…
    Abraços

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